Os famigerados swaps do Citigroup não representaram o primeiro benefício do Estado português a esse banco. Já em 2003, a então ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite fechou um acordo de titularização de dívidas fiscais com essa instituição que, na altura, já era dirigida por Paul Gray. E contra o parecer da IGF, não consultou diversas entidades. Apenas o fez com o Banco Finantia, liderado por pessoas ligadas ao PSD, e apenas três dias depois de a IGF a alertar para a necessidade de uma consulta ao mercado.
A operação de antecipação das receitas visou salvar a meta orçamental do défice de 3% do PIB em 2003. O Estado português recebeu de uma vez 1,765 mil milhões de euros por conta de 11,447 mil milhões euros de dívidas.
A “titularização” trata-se de uma forma de antecipar a cobrança das dívidas inventariadas, antecipação essa feita por uma instituição financeira. Essas dívidas tornam-se num suporte para a emissão de obrigações nos mercados internacionais, no montante que foi antecipado pela instituição financeira. Essas obrigações têm um período de vida e uma taxa de juro, que o Estado irá pagando à medida que for cobrando as dívidas fiscais e à segurança Social e reembolsando os investidores. Ou seja, o Orçamento de Estado de 2003 beneficiou de um encaixe único, mas que foi pago, com juros, ao longo de vários orçamentos futuros.
A opção por esta receita extraordinária deu celeuma. Os contratos não foram disponibilizados em tempo ao Parlamento. Quando o foram, vierem incompletos e por traduzir. O Governo Durão Barroso cometeu a ilegalidade de assinar um contrato em inglês. E os efeitos da operação iriam perdurar por muitos mais anos do que os esperados, sapando a receita fiscal. E já na altura, a maioria parlamentar PSD e CDS chumbou requerimentos da oposição para que o Parlamento recebesse informação relativa à operação e ouvisse a ministra das Finanças e o administrador executivo do Citigroup Paulo Gray.
Mas o mais estranho foi que o Governo não fez uma busca no mercado para ver qual seria a operação que melhor satisfaria os interesses públicos. A Inspecção Geral de Finanças sugeriu-o, mas o Governo – através da sua ministra das Finanças – apenas ouviu o Banco Finantia – uma pequena instituição que tinha na administração dois ex-ministros dos governos PSD, Eduardo Catroga e Luís Todo Bom -, quando havia muitas instituições financeiras capazes de realizar a operação. Teria sido o Citigroup a sugerir ao Governo a operação?
Mas não o mais estranho é que a proposta do Finantia poderia ser mais vantajosa para o Estado. De acordo com a proposta enviada ao Parlamento pela ministra, o Banco Finantia concedia um maior encaixe inicial e conseguia menores taxas a pagar pelas obrigações a emitir nos mercados internacionais. E segundo um estudo de Manuel Baganha, da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, a operação do Citirgoup sairia mais cara que a emissão de dívida pública. O Ministério das Finanças e o Banco Finantia não quiseram, na altura, comentar estes factos.
Finantia foi ouvida para satisfazer a IGF
O grupo Citigroup foi convidado a 17 de Julho de 2003, antes mesmo da Inspecção-Geral de Finanças – consultada sobre a obrigatoriedade ou não de concurso público – ter aconselhado Manuela Ferreira Leite, a 22 de Julho, a proceder “à consulta a mais do que um prestador de serviços”.
A IGF concluiu que a operação assumia a forma de um “contrato excepcionado”, o que não obrigava a concurso público ou concurso limitado. Mas, acrescentou: “Apesar dessa aquisição não estar sujeita ao regime relativo à escolha do tipo de procedimento e correspondente tramitação (…) deve adoptar-se o procedimento que se revele mais adequado, tendo presentes dos princípios que norteiam a contratação pública”. “Em conformidade e se outro não for possível ou adequado, é aconselhável que, pelo menos, se proceda à consulta a mais do que um prestador de serviços”.
Três dias depois, a Finantia apresentou, “na sequência de contactos preliminares mantidos com o Ministério das Finanças”, a sua “proposta preliminar”.
Mas meses antes, Manuela Ferreira Leite afirmara no Parlamento que o Ministério tinha feito diversas “consultas” a outras entidades, sem contudo as nomear, e que o Citigroup fora a instituição que apresentara melhores condições:
“Devo dizer que antes de eu ter o parecer da IGF já tinha consultado mais do que uma instituição. Foi solicitado o parecer para ter conforto aquilo que estava a fazer”, afirmou então. “Quanto se falou de que íamos fazer uma operação de titularização, tivemos propostas de instituições financeiras, direi que “n”. Mas formalmente, foi pedido parecer concorrente com esta instituição à Finantia. E a Finantia foi preterida com o Citigroup – posso apresentar a outra consulta – primeiro, porque as comissões eram mais elevadas. Porque o que se tinha de pagar ao veículo de titularização também era mais elevado. E muito especialmente” porque a sociedade veículo da Finantia era um fundo de títulos. E “sendo um fundo, só poderia emitir unidades de participação, enquanto sendo sociedade [Sagres, do Citigroup] poderia emitir obrigações. E entendemos que para o desenvolvimento do nosso mercado bolsista interessava obrigações e não unidades de participação”.
Mas a ausência de elementos que atestem essa consulta pode revelar, todavia, a pressa com que o Governo se encontrava para obter meios de cumprir as metas orçamentais, erodidas por uma receita fiscal bastante abaixo do previsto.
A proposta da Finantia – enviada ao Parlamento pela ministra há cerca de um mês – propôs entregar ao Estado entre 2 a 2,5 mil milhões de euros por conta de dívidas que pudessem ser avaliadas em dez mil milhões de euros. O Citigroup entregou ao Estado português 1,765 mil milhões de euros por conta de 11,44 mil milhões de euros. Por outro lado, o Banco Finantia considerava que as obrigações a emitir, com um prazo de cinco anos, poderia ter uma taxa de juro subjacente que seria a taxa Euribor a 6 meses mais um acréscimo (“spread”) entre 0,25 e 0,32 pontos percentuais. Após os encontros organizados pelo Citigroup junto de investidores internacionais, nas quais participou o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais português (SEAF), Vasco Valdez, as taxas conseguidas variaram entre 0,11 e 1,47%. Pela operação, o Citigroup cobrava uma comissão de subscrição de 0,15% sobre o montante total e despesas até 35 mil euros. Mas a Finantia cobrava entre 0,248 e 0,318% de encargos totais.
Ou seja, a proposta do Citigroup deu menos dinheiro antecipadamente que a Finantia daria, o que poderia jogar a favor do Estado, caso se cobrasse acima desse valor. Mas o facto de a Finantia dar um maior encaixe poderia ser aproveitado pelo Estado. Caso o Estado não necessitasse da sua totalidade, poderia aplicá-lo e atenuar os encargos futuros. Por outro lado, a proposta do Citigroup representa um custo acrescido para o Estado face ao que se propunha o Banco Finantia.
Na altura, a ministra Manuela Ferreira Leite justificou aos deputados a escolha do Citigroup, pelo facto do Banco Finantia representar uma proposta com custos mais elevados e de obrigar à criação de um Fundo de Titularização, o que não era a vontade do Governo. Na realidade, como se refere na proposta do Banco Finantia, a criação do Fundo pressupunha a aprovação por parte da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários para a sua constituição, o que não aconteceu com a proposta do Citigroup.
O PÚBLICO tentou obter uma reacção a estes factos junto do Ministério das Finanças e solicitou uma comparação de custos entre as duas propostas que, aliás, deve ter permitido à ministra escolher uma delas. Mas a resposta foi a seguinte: Se a pergunta é “sobre as condições de mercado da colocação, ou seja, sobre o preço a que os investidores compraram ao Citigroup as obrigações, como é óbvio, não há comentário”. Na altura, o Banco Finantia não quis comentar.
(baseado em artigos publicados entre Março e Abril de 2004)