As políticas económicas deviam ser como catedrais. Cada colocação de uma pedra deveria seguir um plano e esse plano deveria ser público.
Vem isto a propósito do momento infernal que Portugal vive. Por muito que possa parecer irracional, há uma catedral que está na cabeça de quem governa.
Aos olhos da maioria, apenas se vê as sucessivas vagas de desempregados, o corte acentuado dos rendimentos dos pensionistas e assalariados, das prestações sociais e dos serviços públicos (que redundam em menores rendimentos dos portugueses).
Tudo isso alimenta um estado de espírito de salve-se quem puder, que leva a que as pessoas apostem menos no esforço colectivo. Rapidamente, pensa-se em como pagar menos impostos. E mais lentamente verificar-se-á a fuga às contribuições para a Segurança Social. Quando em 2001 se fez a reforma da Segurança Social – considerando que a pensão de reforma deveria resultar de TODOS os descontos para o sistema, ao longo de TODA a vida activa – foi precisamente a pensar que isso induziria as pessoas a descontar. Agora, com o corte das pensões apesar dos descontos feitos, induz-se que nem vale a pena descontar. O Estado social acabará encolhido, às mãos dos seus próprios beneficiários.
Mas o aperto global tem uma catedral submersa. Qual? Pois, nem se me tinha passado pela cabeça, mas tornou-se-me claro quando, há uns meses, participei numa sessão da firma multinacional de consultoria Deloitte, em que se pretendeu explicar as preocupações do OE 2013 antes mesmo de ele ter sido divulgado. Nessa sessão, um dos seus fiscalistas assumiu que a política seguida tem um objectivo: reduzir de tal forma a procura interna que o investimento que puder surgir se canalize para onde há mercado – o externo. A produção virar-se-á para a exportação. Isso obrigará o tecido produtivo a reestruturar-se e a competir, taco a taco, nos mercados externos. E esse fiscalista dizia isto sorrindo.
O pensamento de um economista liberal tem a elegância de uma equação. E, ao mesmo tempo, a cegueira de um fanático que não olha a meios para realizar a sua catedral, mesmo que à custa do desalojamento de milhares e milhares de pessoas e à fome de outras tantas. E pior: tem o mérito de mascarar com uma ideia nobre aquilo de que realmente se trata: a desestruturação do tecido produtivo nacional permitirá novas oportunidades de negócio e rearranjos entre os grupos económicos internacionais.
Mas esta catedral é tanto mais interessante porque representa em 20 anos a segunda tentativa de a erguer, pela mesma pessoa – o actual ministro das Finanças Vítor Gaspar. Na altura, Gaspar assessorava o então primeiro-ministro Cavaco Silva e então o ministro das Finanças – e actual comentador – Miguel Beleza.
A partir de 1990, promoveu-se a liberalização de movimentos de capitais. Em paralelo, substituiu-se a política cambial de desvalorização deslizante do escudo pela estabilização da cotação do escudo face ao sistema monetário europeu (SME). Foi a política de “escudo duro”.
A ideia era a de que essa política, ao mesmo tempo que reduzia a inflação, obrigaria as empresas exportadoras de fraca produtividade a reestruturar-se, porque a muleta das desvalorização do escudo deixaria de existir. Ou reestruturação ou morte.
O que sucedeu foi que, para manter essa cotação cambial, as taxas de juro tiveram de seguir as alemãs, subindo e dificultando as tesourarias das empresas. Segundo, o afluxo de capitais especulativos – para beneficiar dessas taxas elevadas – valorizou ainda mais o escudo. Ou seja, apertaram-se as condições de crédito interno e acentuou-se a conjuntura recessiva que já se vivia na Europa. Portugal entrou em recessão, subiu o desemprego, fecharam-se empresas, entraram os produtos importados, tomando posições no mercado nacional.
Esta política prosseguiu-se com a adesão em 1993 ao SME e, mais tarde, já com os governos Guterres – sob os planos economicamente indefensáveis de uma coxa união monetária europeia – com a própria integração do escudo no euro, a uma taxa de câmbio demasiado valorizada. Sem qualquer estudo de impacto credível, a perda da soberania monetária foi vendida aos portugueses como a moeda das baixas taxas de juro. Todos poderiam relançar-se num novo patamar de vida.
Ao fim de uma década, o resultado está à vista. A reestruturação do tecido produtivo não foi feita. O crédito fácil promoveu a procura interna e, com ela, sobretudo a construção e os serviços. Com a crise de 2008/9, a fragilidade dessa estrutura ficou à mostra. E agora surge um novo plano: empobreça-se o mercado interno. Isso cortará as importações e incentivará o investimento virado para o exterior. Venda-se as empresas nacionais, defenda-se a sadia morte das empresas inviáveis e envelhecidas (vidé António Borges e Álvaro Santos Pereira). E das cinzas, a economia crescerá.
Crescerá? Mesmo que Portugal consiga sobreviver à irracionalidade da actual política de ajustamento, terá outro problema pela frente: o de como sobreviver ao espartilho cambial do euro. E sobre isso, veja-se o terrível exemplo da unificação alemã em 1990 e da fixação de que cada marco alemão de leste valia um do ocidente. Em poucos anos, a fixação cambial levou ao fecho de milhares de empresas e não evitou o êxodo em massa de habitantes para o lado ocidental. Todo o tecido empresarial de dezenas de milhares de empresas foi vendido em poucos anos a grupos ocidentais e ainda hoje os índices de desenvolvimento dessa zona da Alemanha estão abaixo do restante país. Uma união monetária não é uma panaceia mágica.
É bom que haja um plano para a catedral, mas devia ser público, porque nem todas as catedrais são boas para os portugueses.