Quando o Governo Guterres quis tributar a riqueza… e recuou

1 Posted by - January 22, 2014 - ARQUIVO

ARQUIVO/1999 Medina Carreira esclarece críticas à proposta de tributação do património: a tributação incidirá sobre a situação líquida das sociedades e não sobre o capital social.

Background: Em 1999, o conhecido comentarista Henrique Medina Carreira, ex-ministro das Finanças no I Governo Constitucional, nomeado pelo Governo Guterres como presidente de uma comissão para propor uma reforma da tributação sobre todo o património, apresentou a sua proposta. O projecto foi oficialmente apresentado no último dia de António Sousa Franco como ministro das Finanças, mas a reforma seria abortada pelo próprio Governo Guterres, que preferiu aprovar uma reforma do IRS, votada à esquerda no Parlamento, a qual, por sua vez, seria totalmente abortada pelo Governo Durão Barroso. Na altura, Medina Carreira bateu com a porta. O texto é revelador das opções e torna-se interessante quando, após 15 anos, a reforma do IRS continua por ser feita e deixa a receita do imposto ser paga sobretudo (90%) sobre salários e pensões… E o património é apenas tributado na sua componente de imóveis urbanos. 

O texto que se segue foi publicado no PÚBLICO em 1999.

Tributar o património das sociedades não significa tributar o capital social, independentemente da situação da empresa, afirma o presidente da comissão de reforma da tributação do património, Henrique Medina Carreira. O texto do anteprojecto pode não estar explícito, mas, segundo aquele fiscalista, o que se pretende é que as sociedades sejam tributadas segundo a sua situação líquida. Ou seja, empresas com situações líquidas negativas não pagam.

Esta é uma das respostas às dúvidas levantadas por observadores, depois do projecto ter sido apresentado há uma semana, no Ministério das Finanças, em sessão presidida pelo ex-ministro Sousa Franco.

A proposta visa, em traços grossos, criar um único imposto sobre o património em substituição dos diversos impostos e taxas — sisa, contribuição autárquica, imposto sobre sucessões e doações, imposto sobre veículos e taxa especial sobre os esgotos. A par da sua criação, propõe-se uma forma de curar um dos cancros actuais — a profunda desactualização dos valores matriciais dos imóveis, gerador de fundas injustiças (ver gráficos e fórmula de cálculo). Em terceiro lugar, pretende-se alargar a base tributária abrangendo a riqueza financeira — taxando-se as participações sociais nas empresas e os diversos tipos de créditos (depósitos a prazo, aplicações em títulos de dívida pública, suprimentos de sócios a empresas, etc).

O anúncio da reforma suscitou todavia reacções, se bem que a maioria dos comentadores tenha reconhecido que ainda não tinha lido o projecto. Medina Carreira queixa-se disso e sugere que, depois de estudada a proposta, se lance um amplo debate. A comissão — afirma o fiscalista — nunca esteve fechada a contributos ou alterações para melhor. Esteve mesmo previsto um debate, no seu lançamento, com dezenas de personalidades de diversos quadrantes políticos, sociais, económicos e com opiniões muito diferenciadas. Só que, afirma Medina Carreira, por falta de tempo se recorreu apenas ao seu anúncio.

Mas na prática, mal ou bem, o debate está na praça. E as primeiras opiniões começaram a ser dadas. O presidente da comissão responde a diversas delas.

• A primeira crítica, mais de fundo, põe em causa a razão de ser de uma tributação sobre o património. A incidência, na opinião designadamente do professor universitário e fiscalista Saldanha Sanches deveria ser feita sobre o rendimento — em sede de IRS ou IRC — e não na forma como é dispendido, podendo a transmissão dos imóveis ser tributada em IVA. Medina Carreira responde que essa foi a “opção portuguesa”  do Governo e tem razão de ser “porque a propriedade é reveladora da capacidade contributiva”. “Entendo que não deve haver tributação em IVA, mas é problema anterior à tributação do património, só se aplica na primeira transmissão e implica decisão política não tomada no âmbito do património”, afirma Medina Carreira.

• Um dos problemas levantados é o facto de grande parte das receitas fiscais dos actuais impostos serem receitas das autarquias e que se teria de arranjar uma forma — não prevista pela comissão — de passar receitas do imposto único para as autarquias. Medina Carreira responde que essa deverá ser uma questão a abordar pela Assembleia da República. E que os municípios terão, por certo, uma palavra a dizer.

• Mas talvez o ponto mais sensível da reforma proposta é o que se relaciona com a TRIBUTAÇÃO DA RIQUEZA MOBILIÁRIA. Várias pessoas criticaram o facto de a comissão propor taxar acções que podem não ter rendimento. É mesmo assim? “Sim”, responde Medina Carreira. “O rendimento é considerado nos impostos sobre o rendimento e o património nos impostos sobre o património. Aqui e na Europa”. Mas nesse caso, não se deveria apenas tributar as empresas que tenham lucros, já que, em caso de prejuízos, o valor do património dessa empresa por acção é muito inferior ao valor nominal das acções? Aqui, Medina Carreira explicita que a tributação incidirá sobre a situação líquida das sociedades e não sobre o capital social, ainda que o anteprojecto apenas refira que essa tributação se fará de acordo com o balanço das empresas. E taxar acções não prejudica o crescimento económico? “Depende das taxas”, responde. “Com três por mil, seguramente que não”.

• O facto da tributação se basear nos dados do balanço suscitou a crítica do fiscalista Saldanha Sanches de que, como os balanços eram forjados, a tributação também seria “forjada”. E de que, além disso, estabelecia-se uma diferença injusta entre a forma de tributação das empresas cotadas e não cotadas. Para o presidente da comissão isso nada tem de extraordinário. “É uma forma que em toda a Europa da UE se achou possível e desejável. O nosso código de imposto sucessório também o consagra. Se não fosse assim, como seria?”. Além disso, “a manipulação dos balanços deve ser prevenida em IRC”.

• Dupla tributação de dividendos — como resolver? Medina Carreira responde que essa questão está acautelada. Primeiro, no caso de sociedades que detêm outras sociedades em cascata  — e cujas acções poderiam ser várias vezes tributadas — apenas se tributa a participação social detida por uma pessoa singular, ou seja, a “última” da cascata. E, além disso, está prevenida a evasão. Como se prevê a isenção de imposto para  as empresas não residentes em Portugal, mas que tenham um capital social superior a 500 mil euros (100 mil contos) e um volume de negócios de 1,5 milhões de euros (300 mil contos), isso deverá desincentivar a criação forjada de empresas no estrangeiro para evitar a tributação.

• Logo que se soube que se iria tributar depósitos a prazo, surgiu a crítica de que isso seria penalizador da poupança e, em consequência, do investimento.  Mas, para Medina Carreira, essa questão é apenas “uma questão de taxas”.

•  E sobre os suprimentos — isso não irá penalizar a vida das empresas, sobretudo se o suprimento for para salvar uma empresa?  Para Medina Carreira, “são activos financeiros como outros quaisquer e da fácil verificação e quantificação”.

• Uma das críticas levantadas prende-se com o facto de a comissão ter isentado de tributação obras de arte e jóias, designadamente quando se sabe que são uma forma típica de investimento de determinadas camadas sociais. A justificação para essa isenção é a de que “porque [esses bens] não são encontradas ou são de valorização extremamente difícil ou aleatória. Em certos casos, impossível”. “Quanto vale um quadro? Ainda noutro dia foi vendido um vestido da Marilyn Monroe por 200 mil contos…”

• Sobre o processo de valorização dos imóveis, há dúvidas de como se chegou aos valores de referência do metro quadrado e sobre as ponderações dos vários critérios que, feitas as contas, vão determinar o valor final do metro quadrado de todos os imóveis. Medina Carreira responde que a comissão se baseou dos dados do Laboratório Nacional de Engenharia Civil e, quanto às ponderações dos critérios na opinião de especialistas de sistema de decisões. Mas que se trata de uma proposta aberta à discussão. Os municípios terão uma palavra a dizer, refere.