O Governo anunciou o seu plano B ao nono chumbo do Tribunal Constitucional. De novo, serão os pensionistas e os funcionários públicos a pagar. Ou seja, de novo, ficou de fora a verdadeira riqueza.
Vai ser “recalibrada” a Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) que incide sobre as pensões e vai ser agravada a contribuição dos funcionários para a ADSE. O porta-voz do Governo, Marques Guedes, justificou a medida por não ser um imposto. Caso fosse, disse, isso poderia prejudicar a economia. Na SIC notícias, Pedro Santana Lopes disse que é um sinal de que temos um Governo agora preocupado com o crescimento económico.
Estranha formulação esta: “recalibrar” passa a significar “agravar”. Mas porque não é assumido? É que dizer que se irá “recalibrar” pretende fazer crer que se trata de um pequeno ajuste técnico, algo nada dramático, que pouco efeito terá nas contas das pessoas.
Falemos de números. Existem uns 570 mil funcionários públicos, a que se juntam mais de 3 milhões de pensionistas. Ou seja, haverá uns 3,57 milhões de “vítimas”. Não serão tantos, porque entretanto o Governo fez circular que a medida apenas atinge os pensionistas com pensões superior a 1000 euros. E que as contribuições dos funcionários públicos para a ADSE e pensionistas do Estado vão aumentar dos actuais 2,25% para 3%, no mínimo.
Por outro lado, a medida anunciada visa – segundo as contas do Governo, que estão por comprovar – cobrar cerca de 350 milhões de euros. Se fossem os 3 milhões de pensionistas, cada uma das “vítimas” pagaria, em termos médios, pelo menos 100 euros. Mas será muito mais, embora distribuído por menos pessoas. Aliás, a fazer fé nas contas do Governo, essa recalibragem representará metade da receita que representaria o corte de pensões do funcionalismo…
Ora, tal como foi anunciado, a ideia é cobrar, embora sem afectar o crescimento económico. Mas será que cem euros por pessoa não vai pesar na economia?
Será que os pensionistas estão fora da economia, não consomem, não ajudam a escoar os produtos das empresas com o seu consumo? Até que ponto um agravamento da CES – apenas por ser uma “contribuição extraordinária de solidariedade” – não representa, objectivamente, um corte no rendimento disponível desses pensionistas, tal como o seria um agravamento do IRS, mas um IRS apenas direcionado para quem esteja na reforma ou na FP?
E assim sendo, por que razão, não se tenta agravar – direcionadamente – esse “imposto” para os detentores de riqueza mobiliária? Ou seja, uma CES sobre o valor das acções, das unidades de participação em fundos de investimento, de unidades de fundos de fundos investimento, etc.?
Esse objectivo chegou a ser discutido pelo Governo Guterres, mas ele também recuou. E o jurista Medina Carreira, autor do estudo, bateu com a porta e partiu a louça na comunicação social. Em 2003, no Governo ferreira Leite, quando se reviu a tributação sobre o património, nem a totalidade dos imóveis foi afectada. Apenas em 2013, dez anos depois, se actualizaram os valores patromoniais da totalidade dos imóveis. E mesmo assim ficaram de fora os rústicos e os terrenos.
Por isso, a riqueza tributada – ou seja, o património tributado – fica-se apenas pelos imóveis urbanos, pelas casas de quem vive nas cidades, destinados sobretudo à habitação e actividades comerciais. E mesmo assim com restrições que poupam os imóveis mais valiosos ou quem detenha terrenos à volta da sua casa, geralmente sinal de riqueza dos seus proprietários. Na verdade, quem tenha hectares de terreno à volta da casa, pouco mais paga do que o valor do imóvel instalado nesse terreno…
De fora, fica a maioria do património – o património mobiliário, o financeiro. E pois, bastaria uma pequena percentagem sobre esse património financeiro, com uma taxa inferior a 1%, e isso seria mais do que suficiente para colmatar a verba que o Governo pretende encontrar. E possivelmente teria menos efeitos recessivos, já que não criaria expectativas negativas na população e pouco afectaria o consumo privado. Sobretudo quando se sabe que são os “pobres” aqueles que têm maior propensão ao consumo e ainda por cima são muito mais do que os “ricos”…
Por que nunca são esses os visados pelos novos “impostos”?
Primeiro, porque é uma questão de opção política. Tudo é feito para que não se prejudique as expectativas, sim, mas dos “mercados financeiros”, dos nossos credores. Segundo o Governo, tudo deve ser feito para que não se assuste – sobretudo nesta fase – as agências de rating, mesmo que isso prejudique milhões de pessoas. Mais um sacrifício sobre todos, em nome do bem-estar futuro que virá em Julho.
Em segundo, existe um problema de preguiça política. É mais fácil tributar quem não pode fugir. Há registo de quem trabalha no Estado e de quem vive de pensões. Esses são fáceis de encontrar. E, por isso, de tributar.
Depois, mais grave, porque subliminar ou inconscientemente, existe a ideia de que os pobres ou remediados detêm uma capacidade inata de aguentar. E se não aguentarem, aí está o Plano Nacional de Emergência, lançado por este Governo, para que o sector social da economia – vulgo IPSS – possa apoiar os pobres, onde o Estado não chega. Há uma lógica política e social, de classe, nas políticas seguidas. Está subjacente que o Estado existe para esbater as assimetrias de acesso, de riqueza, de oportunidades. Mas essa função – estorvo – do Estado deve ser financiada, sobretudo, pelos assalariados e pensionistas com mais elevados rendimentos, para que não haja uma efectiva política de redistribuição da riqueza. Porque os outros que não são assalariados nem pensonistas sabem melhor como aplicar o seu dinheiro. E a lógica é que o seu proveito, deles, será a prazo o proveito de todos. Não é o que nos dizem, por ouras palavras, os comentadores da TV, os economistas convidados, os políticos à espera de um emprego quando o seu lugar acabar? O que aconteceria se alguém se lembrasse de aplicar uma medida justa e de aplicar a Constituição? Todos esses fugiriam para outro paraíso financeiro e nós ficaríamos mais pobres ainda. Que falta de coragem política e de visão do interesse público!
Pois bem, essa lógica está à vista nesta pequena e momentânea questão.