Passos Coelho disse, hoje, no 40º aniversário do 25 de Abril: “Existe um número cada vez mais significativo de portugueses que só nasceu e está agora a crescer neste espaço de liberdade e de democracia. E ele tem de reinventar a cada dia que passa porque senão deixamos as nossas comemorações a cheirar a bafio. Não é isso que nós queremos que aconteça com o espírito da liberdade e da democracia. (…) A democracia e a liberdade têm de ser regadas com muito cuidado, todos os dias.”.
Passos Coelho nasceu em 1964 e tem obrigação de se saber o que se passava antes do 25 de Abril. Mas no 40º aniversário, num ambiente de plena clivagem política, com um Largo do Carmo abarrotado de gentes como nunca se viu, impelidas pelo facto de a Maioria ter impedido os dirigentes da Associação 25 de Abril de discursar no Parlamento e de a presidente do Parlamento ter dito “o problema é deles”, nesse mesmo dia Passos Coelho achou por bem falar de “cheiro a bafio”.
Mas “o cheiro a bafio” vem de outras coisas.
Bafio é o que se sente quando – em nome da defesa da competitividade externa, que nunca passará pelo lado dos salários – se leva a cabo uma política de baixos salários, se advoga um novo mínimo para o salário mínimo, para depois – a semanas de eleições – se defender que afinal os salários mínimos já poderão subir.
Bafio é o que se sente quando um primeiro-ministro entra no Governo a defender os maiores apertos de que há memória – tudo em nome da reestruturação da economia que se deve virar para o exterior – e, após cortes em cima de cortes (porque esses se tornam cada vez mais ineficazes) se vem a terreiro dizer que a política está a resultar, mesmo quando se sabe que os postos de trabalho criados foram… no comércio, na restauração e na saúde. As tais actividades centradas na procura interna que tanto tinham sido diabolizadas.
Bafio é o que se sente quando o Governo sustenta a asfixia da contratação colectiva, promove uma negociação empresa a empresa, tudo medidas que têm como efeito colateral quebrar a espinha do sindicalismo, já de si asfixiado financeiramente, em consequência da redução salarial e da explosão do desemprego. É um bafio estranho e incómodo quando se sabe a opinião que tinha o regime fascista dos sindicatos e do que acontecia aos seus dirigentes.
Bafio é o que se sente quando os responsáveis governamentais dizem ser o desemprego a chaga social que urge combater, quando – na verdade – o factor desemprego foi usado pela troika e pelo Governo como forma de “convencer” os trabalhadores a aceitar a baixa de salários. Todos nós conhecemos casos de pessoas que estão a receber de salários bem menores do que eram um salário digno, para exercer o mesmo trabalho de há anos atrás.
Bafio é o que se sente quando se sabe qual é o ambiente que se vive nas empresas em que quem quiser dizer o que pensa, se arrisca a não ser recontratado.
Bafio é o que se sente quando durante anos se estraçalhou o conceito de um horário laboral no sector privado, se fez tudo para reduzir os rendimentos do trabalho, para agora se apelar aos trabalhadores portugueses que tenham mais filhos, a bem do futuro do país e da demografia envelhecida.
Bafio é o que se sente quando se ouve as intenções do Governo de querer tornar mais fácil, mais flexível, mais célere, mais barato o despedimento, sem se lembrar que esse era precisamente o enquadramento da política seguida durante o regime fascista. Às vezes nem tanto quanto se quer agora fazer.
Bafio é uma directora de uma escola achar que está imbuída do espírito oficial e coloca na escola um cartaz a dizer: “Não protestem com os horários que receberam; alegrem-se por ter um”.
Bafio é o que se sente quando se sabe que a rebeldia dos professores, que esteve na rua no tempo do Governo Sócrates, está agora reduzida a nada porque os mais velhos se reformaram e os mais novos não ousam nem sequer se mexer, acobardados pelo risco de não terem emprego, agora que fecharam aos lugares no quadro.
Bafio é o que se sente quando um ex-professor universitário, doutorad0 e desempregado, que contribuiu durante a sua vida activa para a Segurança Social, é “convidado” pelos serviços dos centros de emprego a trabalhar um ano… para a Segurança Social, para introduzir dados informáticos e receber apenas… o subsídio de desemprego. Estar desempregado tornou-se – para o Governo e partidos da Maioria – um clube de madraços que nada querem fazer, mesmo que tenham descontado para estar cobertos para essa eventualidade.
Bafio é o que se sente quando se reduz todas as políticas sociais, a cobro de que se está a esbanjar recursos a quem não necessita, e depois se elogia as iniciativas do Banco Alimentar como um sinal do esforço solidário da sociedade civil. E se diz oficialmente que o Estado Social é para ser defendido e preservado.
Bafio é o que se sente quando se defende os benefícios de uma “austeridade de espírito social”, tida como inevitável, e agora, à beira das eleições, se considera que afinal se pode “desonerar” as pensões e os vencimentos. Mas como? Como é isso possível se temos pela frente o maior terramoto expectável – que é o Tratado Orçamental – que nos obriga a saldos orçamentais tão elevados que vão dar cabo do Estado Social? Como se concilia tanta generosidade com a necessidade de cortes profundos já em 2015 e anos seguintes? Tudo e apenas porque há eleições?
Bafio é o que se sente quando sabemos a forma como certas notícias chegam aos jornais, como membros do Governo ligam directamente aos jornalistas a pedirem que a notícia seja manchete e que ponham uma foto sua na notícia em causa. Bafio e nojo.
Bafio e asco é o que se sente quando esta democracia permite que interesses privados sejam tidos em conta de forma tão benévola, a ponto de serem beneficiários de medidas legais supostamente genéricas, em claro arrepio do parecer dos serviços. Como é que isso é possível quando se comemora o 40º aniversário do 25 de Abril?
Bafio é esta perversão, esta meta-linguagem dos actuais dirigentes políticos que passam uma esponja sobre o passado, até sobre o passado recente, e acham que podem mentir porque saem impunes, que basta colocarem um cravo na lapela para se colarem ao espírito revolucionário. Aí esteve melhor o presidente Cavaco Silva que nem o pôs ao peito na cerimónia oficial. Mas esteve mal quando sublinhou a corrupção como algo a combater urgentemente e se esqueceu que ele beneficiou das suas amizades estranhas, fortificadas durante um cavaquismo, regime percursor de uma corrupção sistémica, em que ele nada fez e tudo permitiu à sua volta.
Estranhos estes tempos em que bafio exala todos os dias de uma prática política mentirosa.