Produção integrada de pobres agradecidos

0 Posted by - December 28, 2013 - ARQUIVO

Mulher urbana: “Quando tive o segundo filho, não tinha dinheiro para médicos. Fui à Misericórdia de Lisboa e lá fizeram todo o acompanhamento materno-infantil. Deram-me medicamentos que eles próprios faziam. Era tudo muito limpo, cheios de atenção. Quando faltava a uma consulta, telefonavam-me a perguntar porquê”.
Mulher rural: “Lembro-me perfeitamente de ir à Casa do Povo, fingir que era pobre, pedinchar. Vivia-se da vontade de ajudar”.
Os relatos são de duas mulheres sobre o Portugal de há 35 a 45 anos. E retratam o tipo de protecção social até bem pouco antes do 25 de Abril de 1974. Não passaram muitos anos, mas o exercício de memória é útil. Nomeadamente para avaliar o recém-anunciado Programa de Emergência Social do actual Governo.
O PÚBLICO procurou a opinião dos sociólogos Boaventura Sousa Santos e Manuel Villaverde Cabral, e de Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar. Jonet foi a única a não responder.
No início do século XX, era escassa a intervenção pública na assistência social. Dependia sobretudo de entidades particulares, ligadas à Igreja Católica. O direito à assistência social ficou na Constituição de 1911. Mas, como lembra a historiadora Irene Flunser Pimentel no artigo “A assistência social e familiar no Estado Novo nos anos 30 e 40”, estava articulada com a repressão à mendicidade, que se manteve um crime até aos anos 60.
O Estado Novo herdou um sistema de assistência incipiente e que não procurava atacar as causas da pobreza. Em 1934, o I Congresso da União Nacional reforçou o papel “supletivo” do Estado. Era uma ajuda aos “anormais físicos, psíquicos e sociais”. E o Estatuto da Assistência Social de 1944 só atribuiu ao Estado a missão de “suscitar, promover e sustentar” obras de assistência se as privadas faltassem. Mas nunca deveria favorecer a “preguiça” ou a “pedinchice”.
O diploma reflectia já as mudanças na Europa ao criticar as teorias do filantropismo do século XIX. Mas em vez das estruturas de segurança social criadas em Inglaterra, nos anos 40, a partir do relatório Beveridge (1942) – que propôs a cobertura a toda a colectividade de protecção de riscos sociais, uma politica de redistribuição de rendimento e o alargamento das coberturas já existentes (doença, maternidade, invalidez, velhice, morte, desemprego) – o Estado Novo fixou, antes, que o esforço essencial assentava no espírito caridoso dos portugueses, uma das suas qualidades naturais.
“Os dirigentes do regime e o próprio Salazar” – sintetiza Irene Pimentel – “atribuíam a miséria em Portugal a dois defeitos: a preguiça e a imprevidência. A assistência social, se fosse excessiva, acabava por estimular o ‘parasitismo’”. Por isso, o Estado devia retirar-se de cena. Para cobrir a “imprevidência”, o Estado Novo criou desde 1935 a previdência social. Cobria os riscos sociais e profissionais e era financiada por trabalhadores e patrões, numa lógica corporativa, de “associação” de interesses.
Mas a articulação com a assistência social funcionava mal e a previdência era ineficaz. Não abrangia o meio rural e só lentamente foi cobrindo a massa trabalhadora. Segundo Henrique Medina Carreira (“O Estado e a Segurança Social”), em 1942, havia 77 mil beneficiários em 2,8 milhões de activos. Os pescadores tinham a Casa dos Pescadores e, no mundo rural, as Casas do Povo, mas tudo numa lógica assistencial. Em 1960, dos 3,3 milhões de activos, só 879 mil eram abrangidos. O verdadeiro Estado social, nos moldes europeus, apenas nasceu a seguir ao 25 de Abril de 1974.
Retrocesso europeu
Foi um esforço que visou colmatar décadas de atraso. Mais recentemente e a através da Lei de Bases da Segurança Social, o Estado passou a assumir – através de impostos – um conjunto de encargos com prestações sociais que não resultem de contribuições dos seus beneficiários (rendimento social de inserção, complementos solidário de idosos, os complementos sociais, pensões não contributivas, os custos da acção social). As políticas sociais reforçaram o rendimento dos cidadãos e atenuaram a pobreza.
Mas o caminho europeu também sofreu revezes. Boaventura Sousa Santos lembra que a “questão social” foi tratada pelos Estados europeus “no seguimento de lutas sociais muito fortes e sempre perante o fantasma da alternativa comunista”. E “para isso, teve que ‘expropriar’ os ricos (era assim que se dizia no virar do século XX) de uma pequena parte da sua riqueza através dos impostos progressivos.” A 2ª guerra mundial foi um momento de viragem. Os impostos progressivos e o intervencionismo do Estado legaram às sociedades ocidentais nas décadas a seguir a 1945 algo importante, segundo o professor de História Tony Judt (1946-2010): “Segurança, prosperidade, serviços sociais e maior igualdade”. Mas “à medida que os beneficiários envelheceram e a memória foi desaparecendo, a atracção dos états providenciaux diminuiu”. Os benefícios sociais tornaram-se “excessivos” para quem nunca beneficiou deles e só os teve de pagar. Um processo que se acentuou nos 80 e 90. “Os regimes neoliberais da época tributaram selectivamente benefícios universais: uma reintrodução subreptícia da condição de recursos foi concebida para reduzir o entusiasmo da classe média por serviços sociais, agora vistos como benefício só para os muito pobres”. Esse tsunami está a chegar agora às nossas costas, às vezes pelas mãos de governos socialistas.
“Houve apenas duas gerações de trabalhadores portugueses que, depois do 25 de Abril, puderam planear a sua vida”, conclui Sousa Santos. “A terceira geração é a geração à rasca”.
Mas, em todo o processo em Portugal, o sector particular nunca perdeu peso. Em 2010, como o PÚBLICO noticiou (20/8/2011), era constituído de 7752 instituições, detinha 95 por cento dos equipamentos sociais nacionais (como creches, centros de dia ou lares de idosos), com 659 mil lugares. Desses, mais de 80 por cento eram de instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e três quartos delas de inspiração religiosa, ligadas à igreja católica. A maioria funciona com acordos com a Segurança Social.
Um programa para as IPSS
E foi a pensar nas IPSS que o Governo lançou o denominado Programa de Emergência Social (PES). Disse o ministro da Segurança Social, o centrista Pedro Mota Soares: “É um programa que não significa mais Estado, significa, sim, mais IPSS e melhor política social”. Aliás, o PES prevê a passagem de 40 equipamentos públicos para as IPSS. O plano deverá “vigorar, pelo menos, até Dezembro de 2014”. E visa ajudar “muitas famílias” que “vivem hoje momentos difíceis”.
Enquanto o Governo estuda reduzir o montante e a duração do subsídio de desemprego (para desincentivar o ócio), o ministro anuncia uma benesse de 10 por cento do subsídio para os casais em que os dois cônjuges estejam desempregados. Vai criar-se um micro-crédito para promover o empreendorismo dos endividados, e dar-se-lhes-á formação para não se reendividarem. O Governo quer reduzir as indemnizações laborais, mas o Ministério da Segurança Social estuda – para as famílias em dificuldade – “uma oportunidade baseada no valor do trabalho”, porque “a sociedade portuguesa (…) não quer que o dinheiro dos seus impostos seja permeável à fraude e ao abuso”. Aos desempregados de longa duração e beneficiários como do Rendimento Social de Inserção, vai promover-se “trabalho activo e solidário”. Vai haver reencaminhamento de produtos alimentares não desejados dos restaurantes ou dos “excedentes” da produção agrícola. As autoridades sanitárias serão aí menos exigentes. As IPSS encarregar-se-ão de tudo coordenar porque, segundo o Governo, são quem melhor conhece o terreno. Medicamentos quase fora de prazo vão para os necessitados. Um mercado à parte de arrendamento de casas desocupadas. Tarifas à parte na electricidade, gás, transportes.
Será que os pobres deixarão de ser pobres? “Essa é um dos problemas que eu acho que o Governo não está a ver”, diz Maria do Carmo Tavares, da comissão executiva da CGTP. Há uma “lógica assistencialista” que não ataca as causas da pobreza e “acho que vão fomentar a informalidade porque acabam por representar rendimentos” que ninguém vai querer perder. Vai ser mais vantajoso não declarar rendimentos.
Ao todo, serão abrangidos 3 milhões de portugueses, dos quais um milhão de pensionistas. Prevê-se gastar 400 milhões de euros só em 2011.
A origem dos pobres
Mas de onde vêm todos estes pobres? A pobreza – cujo limiar é 60 por cento do rendimento monetário mediano (após transferências sociais) – tocava em 2008 cerca de 18 por cento da população. Mas segundo os sociólogos deverá ter se agravado. Em parte, essa realidade deve-se aos baixos níveis de rendimento da sociedade. A uma década sem crescimento. Em 2008, o limiar de pobreza situava-se em 414 euros mensais, pouco abaixo do salário mínimo desse ano (426 euros). Nesse ano, o salário base médio foi de 891 euros e os ganhos salariais ficaram em 1063,4 euros.

Depois, a pobreza deve-se à relativa juventude da protecção social em Portugal e a ausência de descontos suficientes para beneficiar pensões condignas. Finalmente, deve-se, nos tempos mais próximos, ao corte de prestações sociais face ao agravamento da crise. De 2008 até agora, o número de desempregados cresceu 65 por cento mas as despesas com o subsídio de desemprego só 37 por cento. Em Junho de 2011, havia 55 por cento dos desempregados sem subsídio. Num ano, 595 mil crianças e jovens perderam o abono de família. O número de beneficiários do RSI passou de 75,9 mil de Dezembro de 2004 para 323,4 mil em Junho de 2011. Mas o valor médio da prestação baixou de 198,3 euros para 89,7 euros.
O sistema fiscal tem sido ineficaz para cumprir a sua função de redistribuição. Salários e as pensões, pagaram 68 por cento da receita de IRS em 1998, mas em 2009 já era 88 por cento. O IRS é um imposto progressivo (quem mais tem, paga uma maior taxa de imposto), mas o Governo quer reduzir o seu número de escalões. “O problema do IRS em Portugal não é tanto o dos escalões, como sobretudo o das isenções e fugas mais ou menos consentidas, sobretudo em grupos como as profissões liberais, os comerciantes e os agricultores”, defende Villaverde Cabral. A tendência tem sido a de excluir da tributação fontes de rendimento onde se concentra a riqueza. Pouco se fez na quebra do sigilo bancário, que contou sempre com a oposição dos partidos da actual maioria. Mas os beneficiários de apoios sociais são obrigados – desde 2010 – a mostrar os seus bens e saldos das suas contas bancários, para o Estado social aferir se têm direito a apoios universais.
Durante duas décadas pouco se fez de eficaz para combater a evasão fiscal e a economia paralela.
A figura do Estado é pintada pelo actual Governo como alguém gordo e viciado, que não tem em conta como gasta os impostos. Uma mensagem que pode redundar num estímulo perverso à não declaração de impostos, aumentando a pressão para reduzir a dimensão do Estado social. E entregá-la a particulares.
“As chamadas IPSS”, segundo Manuel Villaverde Cabral, “só distribuem aquilo que o Estado lhes dá; nem um tostão mais. A sua vantagem (?) é terem custos laborais mais baixos do que os do Estado, mas isto faz parte do mesmo pacote de redução dos custos directos e indirectos do trabalho”.
Só que quando isso acontece, algo muda. “Só o Estado garante direitos”, defende Boaventura Sousa Santos. “A diferença entre o Estado e os agentes privados é que a estes não é possível exigir o cumprimento de direitos dos cidadãos e muito menos os direitos universais. Os agentes privados não actuam com base em critérios de cidadania; actuam com base em critérios de carência que não são sujeitos ao controle democrático dos cidadãos e do parlamento”.
No caso português, “há um factor adicional de anti-cidadania: a presença massiva da igreja católica nas IPSS faz destas um instrumento de evangelização (bem conservadora, aliás) financiada por um Estado supostamente laico.”
Villaverde Cabral contrapõe: “A ideia de a igreja católica voltar a ter o papel que tinha no tempo do Salazar já me preocupou mais, embora me custe no plano intelectual, depois de mais de 50 anos a lutar contra a influência perniciosa dessa instituição na sociedade portuguesa. Preocupam-me e muito os favores feitos pelo Estado (PS ou PSD ou CDS, não são muito diferentes) às escolas, creches e infantários de marca católica, pois isso afecta a formação das crianças e adolescentes, quanto a mim de forma negativa; sou a favor de uma instrução laica”. Mas “o problema é que as necessidades, a este nível, são crescentes e vai ser preciso ir buscar recursos não se sabe onde.”
A tendência, parece, é o Estado financiar-se entre os beneficiários do sistema, que dessa forma se inter-ajudam sem se aperceberem, mas cada vez com menos recursos. Isso conduzirá o Estado para um sistema minimal de protecção social. “O futuro das políticas sociais é, pois, a sua ‘minimização’ e a assunção do resto das despesas (saúde e reforma) por parte de quem puder; quem não puder, terá a assistência mínima.”, continua Villaverde Cabral. E conclui: “Há mais do que o risco; há a certeza de que é isso que irá acontecer.” Boaventura é mais directo: “Não é um risco: é o objectivo”.

Cabral continua: “A igualdade está a fazer-se, sim, mas por baixo! Não é assim que pensávamos que seria, mas não deixa de ser uma forma de equidade!” Boaventura está muito pessimista: “Estamos perante um sistema de controlo social que existiu sempre e que o breve tempo histórico da social-democracia europeia interrompeu. Em Portugal, só começou com o 25 de Abril e está a terminar agora.”
Mas Manuel Villaverde Cabral acrescenta quase irónico: E “onde estão os protestos?”

(texto publicado no PÚBLICO em Agosto de 2011)